"O que a mim me concerne o Senhor
levará a bom termo; a Tua misericórdia, ó Senhor, dura para sempre; não
desampares as obras das Tuas mãos" - Salmo 138:8
Aquela foi mais outra longa e cansativa
viagem subindo o rio Içana em direção ao nosso lar, entre o povo
Kuripako. Por quase duas semanas a pesada canoa feita de tronco de
árvore, também denominada de "bongo", deslizara suavemente sobre as
águas, levando, quase no limite da sua capacidade, suprimentos
para vários meses.
Aquela jornada marcaria o meu retorno
ao trabalho missionário, após um período de ausência. A minha querida
esposa não pôde me acompanhar desta vez. Por motivo de saúde ela
ficara, juntamente com os nossos três filhos, em Manaus para
submeter-se a um longo tratamento. Sentado quieto na canoa, enquanto
observava um grupo de índios que viajava comigo, alternando-se
em narrativas de proezas das suas caçadas, todas pontilhadas de alegres
gargalhadas, vinha-me à mente
a recordação das lágrimas da minha Rute naquela difícil despedida no
porto em Manaus: "Querido...”, sussurrara ela entre soluços, '. .. sei
que sozinha e ainda me convalescendo, será um pouco difícil nestes dias,
mas sei também que a graça de Deus me fortalecerá! Nós ficaremos bem!
Cuide- se bem e vá!”
A expectativa dos meses de
separação já produzia um indescritível sentimento de saudades, que só
era amenizado por duas certezas: (1) estamos no centro da
vontade de Deus, portanto Ele cuidará de nós e nos conduzirá em triunfo,
(2) nos encontraremos no meio do ano, tendo os corações mutuamente
fortalecidos em amor. Repentinamente, senti o soprar de uma suave
brisa de alegria invadindo o meu coração, enquanto ecoava na minha mente
as sábias palavras de um missionário de cabelos brancos: 'Marcelo, há
um lema que rege a obra de Deus: Sem grandes sacrifícios não há grandes
vitórias!"
À medida que penetrávamos no sombreado
curso do rio Içana, com a selva se adensando cada vez mais ao nosso
redor, crescia também no meu coração este espírito de entusiasmo e
confiança em Deus pelo privilégio de serví-Lo com toda a minha vida.
Confesso que não foi difícil descobrir que o ânimo que me impulsionava
rio acima não tinha origem em mim mesmo, mas me era comunicado ao
coração pela inconfundível e doce presença do Senhor bem ali ao meu
lado.
Uma presença sensível, diante da qual
fugira todas os medos, pensamentos superficiais e inquietações. Então
compreendi claramente o significado desta promessa: 'A paz de Deus que
excede todo entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes
em Cristo Jesus” (FIL.4:7).
Prosseguimos intrepidamente. Após
passarmos uma curva do rio, avistamos uma área repleta de enormes rochas
pontiagudas recortadas pelas aguas escuras do Içana. Estávamos nos
aproximando da “Tsepã-hiipa-lico”, uma das perigosas cachoeiras que
marca fronteira entre os territórios Baniwa e Kiripako. Ao tentarmos
transpor dificultosamente aquela cachoeira, tivemos um instante de
horror quando fomos quase tragados pela fúria das aguas que arremessavam
violentamente nossa canoa sobre as pedras. “Oh, Deus! Ajude-nos,
Senhor! Bradei em profunda aflição, agarrando-me nervosamente às bordas
da canoa!
Neste instante divisei os índios
acenando freneticamente as mãos e gritando desesperadamente uns para os
outros. À proporção que a água invadia a canoa, um terrível pensamento
assaltava a minha mente: "Estamos em grande perigo e vamos alagar na
boca desta terrível cachoeira!"
Repentinamente, me veio também uma
estranha sensação de resistência demoníaca, salpicando a atmosfera do
lugar e intensificando nossa angústia. Mas, naquela mesma hora, a
Bendita Presença que nos levara triunfantemente até ali, nos socorreu e
nos livrou do perigo.
Com o coração batendo aceleradamente,
lembrei-me do exército de servos de Deus que estavam intercedendo por
mim naquela hora. "Querido Senhor, muito obrigado pela Tua
misericordiosa proteção!"
E com os olhos marejados pela comoção,
arrematei: "Eu creio que Tu levarás a bom termo o teu plano maravilhoso
para as tribos da 'Cabeça do Cachorro'. Muito obrigado por fazer parte
deste Teu plano!"
Por quanto tempo ainda as dificuldades
deste mundo impedirão que muitas tribos perdidas ouçam da inefável graça
de Deus? Por quanto tempo ainda nos intimidaremos ante as regiões
sombrias onde impera total ignorância do Senhor Jesus Cristo? Será que
nunca nos ocorreu que o Deus Todo-Poderoso vibra de entusiasmo ao ver a
Sua Palavra alcançando os confins deste mundo? Será que nunca nos
ocorreu que a nossa vida só tem sentido, quando se torna uma resposta
aos grandes desafios missionários do coração de Deus? Estes pensamentos
me abalaram e me fizeram perceber a insignificância da minha vida em
face da grandiosidade da obra de Deus. E, orando baixinho disse:
"Usa-me, Senhor, para produzir a Tua glória neste lugar, e para
estabelecer o Teu reino nas tribos do vale do Içana!" Senti uma renovada
vitalidade brotando dentro de mim e coroando minhas feições de alegria
uma alegria que não era apenas minha!
Passado o clímax da emoção, um índio me
informou que parte da nossa preciosa gasolina tinha sido tragada pelas
profundezas do ']urupari" (cachoeira do diabo na língua nativa), porém o
restante da bagagem, embora molhado, estava intacto. Também ninguém se
machucara no incidente, exceto um índio que caiu sobre as rochas, porém
nada grave. Isto era um milagre! Exultei de alegria e de gratidão ao
Senhor! Sob os olhares atentos dos meus "marinheiros" louvei ao meu
Senhor com um hino na língua indígena, enquanto prosseguíamos.
Ao nos aproximarmos das aldeias Kuripako
exauriu-se todo o nosso estoque de gasolina e ficamos à deriva. Como
estávamos numa grande e pesada canoa, prosseguimos com dificuldade num
penoso processo de remar lentamente, contornando as inúmeras curvas do
rio. Nisto o tempo tornou-se inclemente! O sol retirara a sua luz
desaparecendo sob escuras nuvens! E, em questão de instantes, uma pesada
chuva se abateu sobre nós. Afundamos vigorosamente os remos na água e
resolutos avançamos contra o temporal, até finalmente atracarmos no
porto de São Joaquim, nosso destino final.
A notícia da minha chegada rapidamente
se espalhara por toda aquela região. Ao me aproximar da aldeia, todos os
índios correram em minha direção para me saudarem com um firme aperto
de mão. Em seguida, um alegre e barulhento cortejo conduziu-me até a
minha casa, localizada na parte mais baixa da aldeia Keradaro.
Aquela tarde fria alimentava ainda mais a
saudade da minha querida esposa, enquanto o enorme desejo de chegar em
casa fazia desvanecer o cansaço daquela longa jornada. Mesmo sabendo que
a minha família ficara para trás, assediava o meu coração a viva
lembrança da minha querida aguardando ansiosamente a minha chegada, e
nossas três crianças correndo a me abraçar! Porém, ao entrar, a cabana
estava silenciosa e vazia!
O nosso fogão a lenha, exalando aquele
saboroso cheiro das sopinhas quentes da Rute, agora estava coberto de pó
e sujeira de morcegos. A cobertura de palha da casa, apodrecida,
permitiu que a chuva, insetos voadores e hordas de morcegos entrassem
produzindo enormes estragos. Subitamente, percebi o que significava
estar tão longe da família. Seguido pela comitiva que me recepcionara,
afastei-me da casa por um instante e num gesto quase imperceptível
suspirei como- vido: "Oh, querida Rute, como eu gostaria que você
estivesse aqui comigo!" Lágrimas quentes começaram a rolar na minha
face, confundindo-se com a fria garoa que ainda caía sobre nós. Nisto
acudiu-me um quadro de imensa ternura: Alexandre, um dos anciãos da
aldeia acercou-se de mim, colocou sua mão sobre meu ombro e começou a
orar com voz embargada: 'Você; meu Senhor, Você; meu
Deus santo, agradeço por trazer o nosso pai novamente para nós. Agora o meu coração está alegre porque posso ouvir a Sua Palavra da boca deste nosso pai ... ".
Deus santo, agradeço por trazer o nosso pai novamente para nós. Agora o meu coração está alegre porque posso ouvir a Sua Palavra da boca deste nosso pai ... ".
Foi a primeira vez que ouvi na língua
nativa esta expressão carinhosa de tratamento para comigo. Com o coração
abrasado e incandescido pela emoção, segurei-o pelo pescoço, puxei-o
para junto de mim e choramos convulsivamente num misto de alegria,
tristeza e saudades.
Assim é a obra missionária! Sozinho aqui
no mato tenho aprendido grandes lições de dependência de Deus. Tenho
aprendido que uma vida fácil que a si mesmo não se negue, nunca será uma
vida de excelência nas mãos de Deus. O meu grande ânimo é saber que foi
Ele quem me colocou onde estou e como estou.
Jamais procurei este lugar e posição
para mim mesmo, todavia não tenho coragem de abandoná-Ia, Do âmago da
minha alma eu me deleito no fato de saber que o Senhor fará a Sua grande
obra na vida daqueles que habitam na "Cabeça do Cachorro", alto rio
Içana, confins do Brasil .
Marcelo Pedro-Missionário da Missão Novas Tribos do Brasil
BENEDITO INÁCIO NETO

